a liberdade do fanatismo (ou a falta dele)
chego no estádio com duas horas de antecedência. dizem que é exagero, mas pra mim é ritual. o trânsito não é só desculpa, mas o verdadeiro motivo é aquele tempo antes, do lado de fora, em pé com espetinho na mão, observando a multidão que começa a chegar. homens, em sua maioria. mulheres, poucas. crianças, algumas. há algo de familiar nessa repetição. a fila para entrar é sempre longa, eu geralmente tenho problemas com meu cartão de sócia e se for algum jogo importante, o estádio fica lotado. na final do campeonato catarinense, me coloquei de pé em cima do banco e ali fiquei durante todos os 90 e tantos minutos, sem conseguir me mexer muito além.
eu aprendi a ser torcedora antes de entender direito o que era futebol. eu seguia meu pai pelos campos de areia, depois pelos campos de grama. entendi que ali o amor podia ser barulhento. eu via homens chorando, se abraçando, gritando palavrões, arrancando camisetas e ninguém achava estranho. ninguém questiona a intensidade. é só paixão, algo tão natural quanto respirar. o tempo passou e nada mudou: no futebol, os homens sempre puderam sentir e sentir muito, sem pudor. eles gastam dinheiro com ingressos caros, atravessam o oceano por um jogo, brigam (e se matam) por uma cor, tatuam o nome de um clube.
na final de um campeonato de areia, lembro que o prefeito da época entregou o troféu. o time, tão empolgado, o pegou no colo e o jogou no mar. todos pintaram o cabelo de vermelho e a festa seguiu como se não tivesse fim. nesses momentos — não só de vitórias, mas de derrotas — homens se permitem ficar vulneráveis. eles choram, falam que se amam. não há preconceitos quando o assunto é expressar o amor por seu time (profissional ou não).
e eu aprendi a ser fã do nada. eu lembro da felicidade em descobrir comunidades online que gostavam da mesma coisa que eu, das mesmas séries e dos mesmos artistas. o ano era 2012 e eu estava no twitter criando teorias sobre a terceira temporada de pretty little liars; em 2010, acompanhando o one direction de perto, chorando como nunca quando zayn malik decidiu sair do grupo em 2015. e antes disso, ainda, tentava manter o controle durante as brigas em época de premiações (quem é desse período talvez se lembre da época do MTV EMA onde os fãs competiam sobre qual era a maior fã-base). fãs choram, cantam, se emocionam e são tão barulhentos quanto os homens em estádios.
mas quando um fã se sente assim, com essa mesma entrega, o rótulo muda. se gritam num show, se choram por um artista, se atravessam o país por uma turnê, não é amor, é loucura, carência, falta do que fazer. e aí eu começo a perceber que talvez o incômodo não esteja no exagero, mas em quem se permite exagerar. muito disso, é pela visão machista. geralmente, quem compõe grupos de fãs são mulheres, e esse tipo de amor é alinhado ao feminino. mesmo que muitos grupos também tenham homens — LGBTQ em sua maioria.
considerando tudo, tenho pensado muito que o que incomoda não é o exagero, mas a liberdade de exagerar. o fanatismo do fã é ridicularizado não porque é “bobo”, mas porque ele desafia o controle emocional que tentam impor às mulheres e minorias. quando nos entregamos nessas paixões, dizemos ao mundo que pouco importa o que acham ou deixam de achar. é preciso entender que muitas vezes vem de uma vontade de pertencer a uma comunidade. quando falamos de fandoms, encontramos um lugar onde podemos ser quem realmente somos, sem limites impostos, criando uma linguagem própria. há códigos, gírias, cores específicas e termos utilizados que só alguém “desse mundinho” consegue entender.
já quando falamos da liberdade do homem de ser em um estádio, não é difícil teorizar que isso se dê por ser o úncio lugar onde eles não precisam performar uma masculinidade exagerada. ali eles permitem ser vulneráveis.
e aí é possível, também, traçar uma linha que leva para um outro ponto: o incomodo que homens sentem quando mulheres e lgbtq+ “invadem” esse espaço. é como se nós estivessemos tirando algo deles, descoberto um segredo. quem sabe fica de ideia para um outro texto.
a palavra fanatismo costuma, na maioria das vezes, ser associada a fé religiosa obsessiva, mas o torcedor ou fã fanático não difere tanto assim: ele também não recebe bem opiniões contrárias sobre aquilo que ama, defendendo com unhas e dentes seu objeto de adoração. quando muito grave, o fanatismo distorce até a noção de realidade. a emoção se sobressai a razão. é difícil ter diálogo e fatos são ignorados (mesmo com todas as provas do mundo).
no documentário superturnê: a primeira e última noite, que acompanha o artista jão, ele diz:
“no fim, eu acho meio hipócrita os caras acharem normal tatuarem brasões de times, chorarem por jogador de futebol; e quando são os meus fãs tatuando, chorando, se expressando, aí já é demais.”
e por mais simples e fácil de entender que esse trecho seja, não demorou muito para que torcedores, homens apaixonados, saíssem na defensiva, trazendo até justificativas filosóficas para provar que um torcedor de futebol e fã de artista não são a mesma coisa; como se essa comparação fosse algo absurdo de ser feita.
fanatismo (no sentido de se dedicar a algo ou alguém; paixão), não é sobre exagero, é sobre pertencimento. quando essa liberdade é feminina ou de outras minorias, incomoda, desafia a ideia de que esses grupos precisam ser contidos, sem se entregar com intensidade e sem ocupar com emoção. no fim, a diferença está em quem sente, não no que se sente.
ele também é o problema
o capitalismo também desempenha um papel fundamental nessa dinâmica. ser fã não é apenas uma questão de paixão ou sentimento, mas também de consumo. essa entrega emocional, essa dedicação que temos pelo que amamos, torna-se um produto. cada camiseta, ingresso, item de colecionador, qualquer souvenir que simbolize a conexão com o time ou artista, tem seu preço.
quando falamos de mulheres, essa troca ganha uma dimensão ainda mais maldosa. ao mesmo tempo em que o mercado vende a ilusão de liberdade emocional, de nos entregarmos a um amor sem fronteiras, sem regras, ele também nos obriga a consumir essa paixão de maneira cada vez mais cara e exclusiva. passamos a medir nossa devoção não apenas pela intensidade de nossos sentimentos, mas também pelo valor que podemos investir nisso. o que antes parecia ser uma simples demonstração de amor e carinho (ter uma camiseta, um CD, um photocard) do que se ama, se torna uma competição de quem tem mais. uma corrida para ter acesso aos produtos exclusivos, às experiências únicas e para ter o reconhecimento dentro das comunidades.
no fundo, o que o capitalismo faz é transformar o amor, esse sentimento incontrolável e irracional, em um item de luxo para quem tem condições de pagar, mantendo a exclusividade e o acesso para uma parcela específica da sociedade.
nos últimos anos, no futebol, torcedores tem se unido para reclamar do valor excessivo cobrado por camisetas e valores de ingresso. cada dia que passa, quem pode pagar para usufruir desses ambientes são chamados de ‘torcedores de teatro’, eles ficam ali, sentados, observam o espetáculo e vão para casa. quem ‘torce de verdade’ não consegue arcar com as despesas e “se contenta” com o assistir em bares ou no conforto de casa. cada vez mais, grupos sociais mais pobres são afastados dos estádios e daquilo que amam, se sentindo excluídos (e até traídos) pelo próprio clube.
no fim, o torcedor fanático e o fã ardoroso são produtos do mesmo sistema que sabe como aproveitar essa entrega emocional e que, ao mesmo tempo, coloca um preço nisso.
o que a mulher pode amar?
o que torna a paixão feminina ainda mais complexa e desafiadora para a sociedade é o fato de que ela é aceita apenas quando está direcionada a coisas “socialmente aceitáveis” para mulheres: a paixão por casamento, maternidade e figuras públicas que se encaixam na figura da mulher “perfeita” são vistas como normais. quando uma mulher é obcecada por algo que não se encaixa nesse molde, por exemplo, uma artista de rock, um jogador de futebol, ela é considerada uma chacota. a sociedade, ao contrário, insiste que a paixão das mulheres deve ser voltada para elementos de cuidado, compromisso e o "encantamento", como o papel de mãe. está tudo bem se eu ter o sonho de ter um filho, criar uma família e fazer isso acontecer, mas não está tudo bem se meu sonho for ir num show e conhecer meu artista favorito.
essa limitação traz um desconforto, pois a mulher que deseja intensamente por algo que vai além desses parâmetros esperados é desacreditada e ridicularizada. quando a paixão se volta para o romântico e o cuidar, está tudo bem. porém, quando é mais livre, mais expansivo, ameaça a estrutura que a sociedade tenta manter. a mulher deve ser "desejável", não "desejante" no sentido de ser ativa em sua busca por algo que a emociona sem pedir desculpas por isso.
essa submissão ao controle das emoções femininas e ao que é aceitável dentro de um espaço controlado de amor revela muito sobre as expectativas da sociedade em relação ao comportamento das mulheres. é a mulher passiva, controlada, que tem sua paixão aceita. a mulher ativa, que se entrega ao amor de forma intensa e, principalmente, fora das convenções, se vê em um lugar de marginalização.
quando marianela cagni subiu no alambrado durante o jogo do racing e corinthians na semi do campeonato sul-americana, não se importou com nada além da emoção que estava sentindo. a canela e joelho estavam sangrando, o arame farpado pressionava contra a pele da barriga e entrava em contato com mão e braço que usava de apoio. e quem é fã entende bem o sentimento só de olhar a foto. é a emoção que sobe, que fica presa na garganta e transborda pelos olhos. é surreal, difícil de por em palavras. a gente perde controle dos sentidos, o lado racional é completamente deixado de lado nessas horas. a gente sente e age no sentimento.
aos comentários machistas que recebeu, falando que ela havia ‘se passado’, que estava querendo atenção, cagni respondeu: “eu não posso por ser mulher? não. como você viu, eu posso, sim.”
quando pensamos nesse tipo de situação, fica claro que o que se quer, na verdade, não é que a mulher tenha suas emoções ou sentimentos validados, mas sim que ela os tenha de maneira "controlada", restrita. ao longo da história, a mulher foi ensinada a ser reservada, a não mostrar seus sentimentos em excesso. uma mulher apaixonada de forma excessiva foge da regra. e quando ela foge da regra, gera um tipo de incômodo que parece ser ainda mais forte do que qualquer outra manifestação emocional que possa existir.
a lady gaga veio!
com o show gratuito da lady gaga em copacabana e os fãs se reunindo em frente ao copacabana palace aguardando o tão sonhando sonho de ver a cantora, novamente páginas de futebol se sentiram no direito de ridicularizar os fãs.
em um vídeo, a torcedora e fã, mariana spinelli, jornalista esportiva, traz a pergunta: o torcedor é tão diferente assim do fã da diva pop? a resposta é não.
de forma simples, o fato é que torcedor e fã só tem de diferente a palavra. um torcedor, no fim do dia, é um fã. assim como eu fico em filas de show aguardando a abertura dos portões, eu fico na fila para entrar em estádios; assim como eu grito e canto músicas, eu grito e canto os cânticos da torcida. assim como eu tenho roupas temáticas para shows, eu tenho a camiseta do meu time — e indo até mais longe com as comparações: como eu tenho um bias num grupo de k-pop, eu tenho meu jogador favorito.
então, o que chamam de exagero é só liberdade em voz alta.
e isso, pra muita gente, ainda é um absurdo imperdoável.
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Que texto incrível e necessário!!! Estava pensando sobre isso esses dias com o show da Lady Gaga rolando! Amei como você abordou várias esferas do ser fã, do ser mulher, do capitalismo!
Que maravilha de texto. Abriu muitas janelas na minha cabeça. Afinal fala de temas que eu penso bastante.
Eu amo futebol, e quero rever diariamente meu machismo. Não faz muito tempo, eu ainda "atestava" a paixão das mulheres por futebol, quando uma delas falava que era torcedora de um determinado time. "Ah, você gosta? Me fale 3 jogadores do atual elenco".
Há quase dois anos, me tornei pai da Maitê, que desde cedo assistia Premier League e os jogos do Cruzeiro no meu colo. Alguns anos atrás me imaginei levando meu filho(a) para o estádio a primeira vez. Como seria, que belas memórias afetivas isso traria. Mas atualmente, penso na loucura que é levar uma criança para um estádio. É muito violento, e não tenho necessariamente medo de acontecer uma briga no meio da torcida e sermos atingido. Uma bola que saia pela linha lateral em um jogo que nem valha muita coisa, é motivo suficiente para xingar o juiz.
Enfim, estou divagando. Adorei o texto.